18.4.04

Spinoza - Cours Vincennes - 24/01/1978

Foi publicada hoje a tradução da aula de 24/01/1978, em que Deleuze explica o que é idéia e afeto em Spinoza. Trata-se de uma aula de grande interesse tanto para filósofos quanto para não-filósofos.

Como todos sabem, traduzir é necessariamente trair; mas há muitas maneiras de trair, e a melhor traição é aquela que recria ou transcria. Uma boa tradução requer ao mesmo tempo rigor e ousadia. Os critérios que utilizei para fazer essa tradução, em ordem de importância, são:

(1) Fidelidade ao sentido do discurso de Deleuze.
(2) Clareza do texto.
(3) Respeito às peculiaridades de um discurso oral proferido numa sala de aula.


Jamais se poderá ressaltar com força suficiente as dificuldades envolvidas na tradução de um discurso oral que foi posteriormente transcrito. Houve pelo menos um caso em que eu fui obrigado a corrigir o próprio texto original. Os itálicos são meus:

Une idée-notion ne concerne plus l'effet d'un autre corps sur le mien, c'est une idée qui concerne et qui a pour objet la convenance ou la disconvenance des rapports caractéristiques entre les deux corps. Si il y a une idée telle - on ne sait pas encore si il y en a, mais on peut toujours définir quelque chose quitte à conclure que ça ne peut pas exister -, c'est ce qu'on appellera une définition nominale. Je dirais que la définition nominale de la notion c'est...

Como se vê, essa passagem é sobre a "idéia-noção" ou "noção", a "noção comum" de Spinoza. Ora, pontuada da maneira que está, essa passagem acaba induzindo o leitor a pensar que esse tipo de idéia (a noção comum), caso exista, é uma definição nominal, o que simplesmente não faz nenhum sentido. O que Deleuze está dizendo é que (1) não se sabe (ainda) se esse tipo de idéia existe, e que (2) antes mesmo de sabermos se ela existe ou não, podemos propor sua definição nominal.

Como esse equívoco na pontuação do texto está presente no original em francês, todos os tradutores, sem exceção, acabaram perpetuando-o.

Ora, Deleuze começou com uma oração condicional: "Se existe esse tipo de idéia...", mas logo em seguida fez uma rápida digressão sobre o que é uma definição nominal. Eu poderia ter mantido a frase como está, modificando apenas sua pontuação, mas não ficaria tão claro quanto poderia. Por isso optei por transformar a oração condicional numa interrogação:

Uma idéia-noção já não diz respeito ao efeito de um outro corpo sobre o meu, é uma idéia que concerne e que tem por objeto a conveniência ou a inconveniência das relações características entre os dois corpos. Existe esse tipo de idéia? Não sabemos ainda se existe, mas sempre é possível definir alguma coisa, mesmo que seja para concluir em seguida que ela não pode existir: é o que se chama de definição nominal. Eu diria que a definição nominal de noção é...

Assim, se por vezes é preciso trair a letra para não trair o espírito, há ocasiões na quais, em nome do espírito, é preciso trair até mesmo o "original" - sobretudo quando não se trata de um texto escrito e revisado pelo próprio autor, mas da transcrição de uma fala.

Enfim, estas aulas revelam com muita clareza uma faceta talvez menos conhecida de Deleuze: a de (grande) "historiador da filosofia", e principalmente a de professor, preocupado ao mesmo tempo em facilitar a compreensão de conceitos e de problemas filosóficos vitais. Aqueles que tiveram a oportunidade de assistir às aulas de Cláudio Ulpiano, pensador incomparável e introdutor do pensamento de Deleuze no Brasil, perceberão que se trata de uma mesma "escola", que sabe aliar uma extrema frieza - o rigor absoluto do conceito - ao tórrido subterrâneo que diz respeito à nossa vida de todos os dias, aos nossos modos de vida, à nossa escravidão e à nossa liberdade.